Cartel Psicanálise e Maternidade
- Amanda Lantyer
- há 9 horas
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05/12/2025 - Apresentação na Jornada de Cartéis da Sociedade Psicanalítica Online
"O discurso maternalista na psicanálise"
Preciso começar falando da experiência em si. Esse foi meu primeiro cartel. Começamos em Janeiro deste ano. Me uni à três outras mulheres também estreantes nesse lugar: Miriana, Elisabete e Luciana. Poderia me ater um pouco à dimensão das nossas diferenças ou das nossas semelhanças, mas não creio que é preciso. Se tem algo que é icônico de nossa área, é a singularidade de cada pessoa e isso, é o que acredito que Lacan viu como potência em um cartel. Porém, preciso dizer, a experiência com a maternidade, tanto as nossas como as de outras mulheres que atravessaram a nossa existência, a cada uma de nós nos serviu a todo instante, como pano de fundo de nossas dúvidas, inquietações, discussões e reflexões. Se tornar mãe é algo que pode ou não acontecer, na vida de uma pessoa, mas vivenciar a maternidade não, isso é algo de todos nós.
Escolhemos uma obra para iniciar nossos trabalhos: “Manifesto Antimaternalista”, da autora Vera Iaconelli. Por que escolhemos esse livro? A nossa resposta foi muito simples, por que três já tinham o livro e queríamos estudar Psicanálise e Maternidade juntas. Mas, por que o tínhamos? Bem, isso já diz algo sobre nosso desejo. Como bem observou, no encontro com nossa Mais Um, Karina Stagliano, curioso foi esse percurso de começar pelo antimaternalismo. Nos questionamos, por que um livro desses parece (nos) ser tão necessário nos nossos tempos? Qual o discurso maternalista que permeia a psicanálise a qual nos devemos despir? Gosto da palavra despir, pois imagino que a vida inteira nos vestimos corporalmente de experiências, idéias, preconceitos e convicções, a tal fantasia que nos dá sentido. Então acredito que no nosso percurso psicanalítico precisamos ir despindo disso para ouvir.
Fato é que a psicanálise é contemporânea do discurso maternalista. A psicanálise tornou a maternidade central, especialmente ao abordar o Édipo e as relações precoces. Freud concluiu que a solução "saudável" do Complexo de Édipo feminino era a maternidade, com o filho (de preferência homem) servindo como substituto fálico. Essa visão, que se tornou crescentemente heteronormativa e biologizante, levou a psicanálise a reforçar o maternalismo ao confundir as funções essenciais de cuidado com a figura da genitora.
Freud apegou-se à família padrão-ouro (mamãe, papai e filhos) para exemplificar e pensar o Complexo de Édipo. Lacan logo depois já introduziu a função materna (de fusão) e paterna (de separação) diminuindo a distancia entre a teoria e a diversidade de configurações familiares. Vera nos instiga em seu livro a perceber que o discurso maternalista imputa à mãe um papel insubstituível. Para exemplicar, destaco aqui, como Vera em seu livro, que o significante “mãe” é tão densamente carregado no nosso imaginário que Margareth Mead ao assistir a pais Arapesh, da Nova Guiné, dedicarem-se extensivamente aos seus recém-nascidos descreveu tal cuidado carinhoso como: materno. Contudo, o que a própria psicanálise nos mostra nos consultórios é que sim, os genitores podem ser substituídos e os cuidadores principais podem ser outras pessoas, inclusive fora do núcleo familiar hereditário. Talvez poderíamos dizer que o cuidado materno nada mais é do que um cuidado humano dedicado e intensivo.
Do que precisamos despir para ouvir uma mãe? O que leva uma mãe a chegar até um consultório psicanalítico movida pela sua relação com a maternidade consciente ou não? Ao fazer uma retrospectiva dos nossos encontros, vejo que passamos algumas vezes pela famosa pergunta de Freud à Maria Bonaparte: “O que quer uma mulher?”. Nos questionamos, como Freud pode ter ousado responder algo tão plural? Alguém pode responder o que quer um homem? Talvez perguntar isso esbarre no mesmo problema: como generalizar uma resposta para algo que atravessa a singularidade? Talvez a pergunta “o que quer uma mulher?” revela mais sobre a dificuldade de Freud (e da psicanálise nascente) em lidar com a alteridade do feminino do que sobre as mulheres em si. É como se o desejo masculino fosse mais facilmente lido dentro da lógica fálica e o feminino escapasse dessa estrutura, tornando-se um enigma.
Então parafraseando Freud, podemos ingenuamente como ele foi, nos perguntarmos: “O que quer uma mãe?”. Desdobrando ainda mais esta pergunta: O que está por trás do desejo de gestar? do desejo de ter filhos? do desejo de ser mãe? O que isso diz sobre cada mulher que gesta, pare, nutre, cria, adota, acolhe e sustenta um outro ser a quem dá o nome de “filho” ou “filha”? Embora essas perguntas possam atravessar a nossa clínica, antes disso, precisamos nos questionar de que mãe é esta que estamos falando? De que maternidade estamos falando?
O discurso maternalista carrega uma moralidade e um ideal para esta função. Ao reduzir as mulheres à função de mães e trabalhadoras domésticas não remuneradas, o maternalismo justifica e reitera a posição feminina no exercício de tarefas imprescindíveis para a consolidação e manutenção do capitalismo, como a reprodução social. A persistência do maternalismo, que usa a divisão biológica da reprodução para justificar a iniquidade de gênero, mostra a necessidade urgente do antimaternalismo como condição para que as políticas públicas promovam o bem-estar social sem perpetuar injustiças.
No Brasil, percebemos como a falta de direitos reprodutivos, retira de mães e pais pobres a chance de assumir a sua descendência, reduzindo mães e pais socialmente vulneráveis a genitores. Enquanto a elite tem sua parentalidade garantida, famílias pobres e racializadas sofrem vigilância e perda de guarda. Além disso, o discurso maternalista, que se alimenta da idealização do ciclo perinatal e da heteronormatividade, continua a imputar poderes de cuidado inigualáveis às mulheres. Por isso, discutimos muito sobre a importância de a parentalidade ser analisada pela interseccionalidade (classe, raça e gênero).
Não pude deixar de me debruçar sobre o que é biológico da experiência humana de gestar e parir, já que minha raiz de bióloga naturalmente me instiga a isso. Certas mudanças evolutivas, como o bipedismo e o aumento do cérebro, tornaram os nascimentos humanos difíceis e os filhotes extremamente dependentes, exigindo cuidados ostensivos e prolongados. Essa dependência precoce gerou uma interação intensa que sustenta uma interação social mais rica do que os instintos restritos de outros mamíferos. Embora o processo reprodutivo seja fisiológico e possa ocorrer inconscientemente, a subjetividade humana (crenças, medos e fantasias) afeta profundamente a dinâmica do parto e da gestação, tornando a experiência única e complexa.
Nos capítulos sobre gestação e parto, discutimos sobre como gestação é uma potência do corpo do sexo biológico feminino e como a dimensão psíquica da vivência de uma gestação é muito única e carregada de atravessamentos pessoais, sociais, culturais, transgeracionais, familiares e financeiros. Nos deparamos com os restos não simbolizados que ficam após a gestação e principalmente após o parto. Trocamos muitas informações e experiências sobre esse momento e nos deparamos com o imenso rasgo psíquico e corporal que um parto realiza em uma pessoa que gesta. O retorno psíquico e corporal é apenas a um estado corporal de dois menos um, mas um jamais será novamente apenas um.
No consultório físico e online, recebo mulheres que se defrontam com a não-maternidade, uma perda dessa potência corporal. Seja essa perda imposta pela natureza, pela vida, pelas circunstâncias ou uma escolha pessoal, percebemos que há ali uma potencia do corpo do sexo feminino que é posta de lado. Não à toa, a depender das circunstâncias, a não-gestação pode ser vivida como uma sangrenta ferida narcísica e exige uma sublimação equivalente.
O corpo do sexo biológico masculino não detém a potência criadora do gestar (pelo menos, ainda). Aqui, tivemos um encontro em que nos perguntamos sobre a inveja do gestar. Pesquisamos mais e encontramos autoras psicanalistas como Karen Horney (“inveja do útero” em The Flight from Womanhood), Julia Kristeva (Historias de Amor) e Nancy Chodorow (The reproduction of Mothering) que já falaram sobre esse tema anos atrás. Para estas autoras, o homem é confrontado com um limite real, haveria uma idealização ou ainda uma inveja do potencial criador feminino.
Aos homens cis, a não-gestação já é um fato e o que decorre psiquicamente disso? A nível de fantasias infantis, fiquei a pensar que da mesma forma que as crianças esbarram na diferença sexual, esbarram na diferença do corpos que geram que dos que não geram. Meninos e meninas crescem observando que há algo exclusivo do corpo feminino, que é o gestar e seu desdobramento, o amamentar. Como uma impotência de gerar vida é sentida, vivida e experienciada seja consciente ou inconscientemente? Estes foram alguns dos desdobramentos de nossas discussões de que mais gostei e que muito nos fizeram ir além do livro sobre o discurso maternalista.
A insustentabilidade da maternidade atual na sociedade ocidental provocada pelo discurso maternalista socialmente e culturalmente disseminado é apontada no livro como um impasse do desejo de liberdade e erotismo. O déficit demográfico em países desenvolvidos, inclusive, tem levado à respostas autoritárias como a revogação do direito ao aborto. O uso da divisão biológica da reprodução para justificar a iniqüidade de gênero mostra a necessidade urgente do antimaternalismo como condição para que as políticas públicas promovam o bem-estar social sem perpetuar injustiças. Aqui cabe relembrar a importância que a autora dá que as crianças sejam tomadas como uma responsabilidade coletiva da sociedade e não apenas das mães.
Antes de me despedir, gostaria de enfatizar a importância de nos dedicarmos ao estudo de vidas e obras de psicanalistas mulheres. No livro de Vera, diversas autoras e suas mais variadas contribuições à psicanálise são citadas, aqui destaco: Virgínia Bicudo, Karen Horney, Melanie Klein, Colette Soler, Sabina Spielrein, Marie-Christine Laznik, Piera Aulagnier, Julia Kristeva, Marie Bonaparte, Maria Rita Kehl, Betty Milan, entre tantas outras.
Bom, gostaria de concluir a minha fala da forma como comecei: falando da experiência de viver um cartel. Nesse lugar de cartelizantes iniciantes, nós decidimos que leríamos e discutiríamos cada capítulo, a cada encontro, mas o que veio foi além. Não passamos ilesas desse processo. Misturamos com nossa leitura, nossas histórias, experiências com a maternidade, com a clínica, com o feminismo, com a biologia, com pedagogia, com a enfermagem. Vieram dúvidas, medos, assombros...trocamos livros, podcasts, sugestões de filmes e documentários, com conteúdo sobre essa vivência humana tão singular para cada uma. Nossas vidas também atravessaram o cartel. Seja pelas viagens, pelos atrasos, pelos filhos, cachorros e gatos que apareceram nas reuniões, ou pela notícia de uma avosidade a caminho, uma mudança de cidade, uma mudança de dia da semana e horário, perdas gestacionais ou ainda pelas ausências, repletas de motivo, mas atravessadas pelo imenso desejo de ter mais um precioso encontro. A experiência de viver um cartel nos brindou com um certo tipo de entrosamento: a amizade. Nos demos conta de que contrariaríamos Lacan ao manter os laços ainda que em um cartel dissolvido, nomeado como tal, num grupo de WhatApp com o jocoso nome: “Isso não é mais um cartel”.
Para quem tiver interesse à íntegra deste texto, deixo aqui meu site www.amandalantyer.com.br
Agradeço a todas integrantes pela companhia nesse percurso tão gratificante, agradeço também SPO pelo espaço e estímulo à formação dos cartéis no nosso meio, à Daniel Gostautas pelos direcionamentos e a todos os que nesse momento participam e assistem à esta Jornada de Cartéis.



